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SÉRGIO PÉO – O ESPLENDOR DA REVOLUÇÃO CARAÍBA

por Lucas Parente

Nascido em Belém do Pará em 1947, Sérgio Péo cursou arquitetura e urbanismo na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Movido por uma atitude contestatória, ao concluir o curso decidiu não obter o diploma. Desde então voltou-se a práticas antropológicas, locais e não oficiais da arquitetura, sobretudo através de trabalhos realizados em favelas como Maré, Rocinha e Guararapes. 

Nos anos 70 realizou filmes em Super 8, através de técnicas e linguagens que viabilizassem um alto grau de aproximação da realidade cotidiana na cidade grande. Pode-se afirmar que filmes como PIRA (1972) e ESPLENDOR DO MARTÍRIO (1974) são obras que expandem o cinema na direção da intervenção urbana e da performance. Na época, Sérgio Santeiro ministrava cursos de cinema no Parque Lage, realizando algumas experiências em 16mm, mas configurando-se sobretudo em uma verdadeira explosão do superoitismo no Rio de Janeiro. Tratava-se de uma busca pela não separação entre cinema e vida, pensamento e ato, na busca pela criação de um verdadeiro “fluxo de ações” ininterruptas. “Vamos agitar. Vamos fazer.”  

A partir de 1974, os filmes de Péo voltaram-se mais diretamente para a contestação das condições de habitação e das políticas de planejamento urbano no Rio de Janeiro. Primeiramente, Péo filmou o curta MARÉ (1974), e visitou as comunidades de Nova Holanda e Timbau, onde entrevistou o presidente da associação local. 

Em 1980, desenvolve com as lideranças locais ideias da criação de um estúdio de fotografias  para realizar uma “novela mimeografada” que funcionaria como uma “gramática do cotidiano”. Pretendia morar na Maré, mas logo houve a remoção da praia de Inhaúma, às margens da Baía de Guanabara. Péo registrou o acontecimento extremamente veloz, que pretendia-se veicular na imprensa. Do material saíram matérias no jornal Ocasião e seu filme NA MARÉ COM HO CHI MINH (1983).

Péo decidiu continuar tentando dar voz à sua inquietação de pensar a favela. Alugou um quarto na Rocinha, almejando utilizar-se do cinema como forma de articulação entre pessoas, ações, ideias, filmando no intuito de saber o que pensavam, o que estavam fazendo na Rocinha, quando a sociedade não falava do que acontecia nas favelas. Surgiu então ROCINHA BRASIL 1977, mais conhecido como Rocinha 77. Trata-se de um marco no cinema de favela, sobretudo por romper com a certa romantização da favela pelo Cinema Novo. 

Instaura-se uma questão documental no cinema de Péo. Ao invés de buscar uma abordagem intimista, das personagens que despontam no filme, Péo procura “o espaço do fora, espaço para fora da personagem” que estava tentando definir. As intervenções e performances de seus primeiros filmes transformam-se aqui em intervenção da própria câmera em relação com a performance do lado de fora. Trata-se de uma verdadeira “antropologia poética da cidade”, segundo expressão do cineasta e historiador Roberto Moura, onde o antropólogo deixa-se devorar por seu “objeto de estudo”.

Em meados dos anos 70, e junto a outros cineastas de sua geração, se posicionou a favor de políticas em defesa da cinematografia nacional, lutando pela distribuição e exibição de curtas-metragens. É a época da Lei do Curta, que tornava obrigatória a exibição de um curta-metragem nacional antes de cada longa estrangeiro. Foi então um dos responsáveis pela fundação da CORCINA (Cooperativa dos Realizadores Cinematográficos Autônomos) e seu primeiro diretor-presidente. A cooperativa chegou a reunir 46 cineastas, realizando por volta de 50 curtas-metragens em 5 anos, e distribuindo mais de 100 pelo Brasil e Europa. 

Em dois de seus filmes, registra e documenta parte da memória desta luta: CINEMAS FECHADOS E CINEMAÇÃO CURTAMETRALHA, ambos de 1980. Em CINEMAS FECHADOS, rodado na Praça da Cinelândia à noite, após um dia normal de trabalho, mostra o bar do Amarelinho repleto de cineastas. No meio da praça, diante do comércio fechado e com o Teatro Municipal ao fundo servindo de cenário, Sérgio Péo realiza entrevistas diante de uma tela branca onde projeta-se a luz de um re etor. São entrevistas denunciadoras com cineastas e técnicos do cinema nacional,  captados entre o trabalho e a boemia. A praça vira sala de cinema, estúdio e palco, enquanto Péo desloca-se sobre os trilhos de um travelling,  filmando e sendo filmado.

O curta-metragem evidencia-se enquanto questão central no pensamento cinematográfico de Péo. Cinema artesanal, que se opõe ao cinema como objeto de prazer, segundo um modo de produção delimitado. Exibido antes de cada longa estrangeiro, o curta torna-se apreensível como cinejornal, mas também teatro e carnavalização do cinema que requer participação do público. Péo lança a rua na sala de cinema, e a sala de cinema na rua. Ponto de encontro e de embate, “a função do cinema (...) é de discussão cultural e ideológica ao nível do social”. Trata-se de um “espaço de conquista”, com filmes produzidos “o mais democraticamente possível, por uma quantidade de criadores o mais diversificada e com o maior número de leituras desta realidade”. 

Parece haver um contraponto no cinema e no pensamento de Péo, entre formas de construir e ocupar espaços no cinema. De um lado o centro da cidade e a Zona Sul se relacionam, em ESPLENDOR DO MARTÍRIO e CINEMAS FECHADOS, à performance, à intervenção, à teatralização do cinema nas ruas. De outro lado, as favelas em ROCINHA 77 e ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES DO GUARARAPES, se relacionam com a fotonovela, a reportagem, o cinejornal. Ambos os caminhos parecem se condensar em Contradições Urbanas, onde o conjunto habitacional do Catumbi entra em oposição aos conjuntos da Selva de Pedra e da Cruzada São Sebastião no Leblon, construído para abrigar os removidos da Praia do Pinto. O filme é como um irmão do livro e do filme QUANDO A RUA VIRA CASA (1980), do arquiteto Carlos Nelson, que trata do bairro do Catumbi e que, como Sérgio Péo, voltou sua teoria e prática para a arquitetura das favela no Rio de Janeiro. 

A tentativa de um cinema que se aproximasse da realidade se tornou evidente quando Rubem Corveto, integrante da CORCINA e com quem Sérgio Péo viria a realizar o curta-metragem O Muro, trabalhava no Banco Nacional da Habitação e lutou para que salas de cinema com projetores de 16mm fossem obrigatórias nos novos complexos habitacionais. O projeto de lei deveria ser aprovado pela Embrafilme para seguir caminho, mas a Embrafilme não assinou, enterrando o que talvez viria a ser uma das grandes heterotopias do cinema nacional. Assim, na década de 80, após seguidos boicotes à Lei do Curta e à CORCINA, Sérgio Péo e outros integrantes da CORCINA acompanharam a emergência do movimento operário e do Partido dos Trabalhadores, na região do ABC paulista, período em que realizou o curta-metragem A,B,C, BRASIL. 

No final dos anos 80 e durante os anos 90, Péo passou também a dedicar-se a pesquisas acerca dos índios brasileiros, resultando no filme ÑANDERU, PANORÂMICA TUPINAMBÁ. ÑANDERU faz renascer o indianismo no cinema brasileiro, voltando-se ao mito das origens. Filmado de cima do morro da Coca-Cola, o filme traça uma panorâmica no espaço e no tempo, revisitando a cosmovisão tupinambá. Vindo de um cinema que esteve sempre atrelado à questão do espaço, Péo aqui se abre a um espaço amplamente espiritual. 

Poderia-se, em guisa de conclusão, afirmar que há três rumos principais na obra de Péo. De um lado, trata-se do pensamento do cotidiano, da realidade e da arquitetura da favela. De outro, trata-se de um pensamento tecnológico e de linguagem, voltado para a indústria cultural, para o cinema como espaço de encontro, mas também para os pequenos formatos do Super 8, do cinejornal e da fotonovela. Em terceiro lugar, finalmente, trata-se de uma síntese de tecnologia e espacialidade através da cosmologia ameríndia, que apontam para um passado e um futuro extremamente amplos e para novas possibilidades de Brasil.

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