ANTÔNIO MORENO – CINEMA É ARCO-ÍRIS
por Lucas Parente
Nascido em Fortaleza no ano de 1949, Antônio do Nascimento Moreno é um criador precoce e obstinado. Além de compor animações experimentais, escreveu livros: O Filho do Cérebro (1973), livro de contos adolescentes, A experiência brasileira no cinema de animação (1978), marco na literatura sobre o tema, A personagem homossexual no cinema brasileiro (2001), e o mais recente Cinema, infância e religiosidade na Espanha franquista (2019). Atuou como assistente de direção e montagem em diversos filmes. Ministrou disciplinas de animação no Departamento de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Fluminense (UFF, Niterói, RJ) de 1983 a 2018.
Antônio Moreno chegou ao Rio de Janeiro em 1964. "Entre tanques" como costuma dizer. Fez parte da "geração Paissandu", quando no cinema de mesmo nome projetaram-se filmes da nouvelle vague francesa e do Festival Brasileiro de Cinema Amador JB/Mesbla (1965/1970). O festival exibia filmes em 16mm, promovendo encontros e debates entre os jovens realizadores.
Circularam, então, muitos filmes experimentais pela cidade. Com o apoio de Cosme Alves Neto, então diretor da Cinemateca do MAM, os jovens realizadores buscavam cópias em consulados de países estrangeiros, exibindo-as em sessões e mostras na cinemateca. De modo que um grupo de experimentadores foi se formando, de cinefilia voltada para os filmes de Godard, do Cinema Novo e das animações experimentais do leste europeu, da Alemanha Oriental e do Canadá. Foram influências de Moreno realizadores como Len Lye, Norman McLaren, Jan Popescu Gopo, Zdeněk Miler, Walerian Borowczyk, Jan Lenica, Dušan Vukotić.
Foi quando fundou-se o grupo Fotograma em 1968, contando com Antônio Moreno, Pedro Ernesto Stilpen (o Stil), Zélio Alves Pinto e Jô Oliveira. Oriundo do recém dissolvido CECA (Centro de Estudos de Cinema de Animação que havia surgido na Escola de Belas Artes), o grupo Fotograma durou pouco, dissolvendo-se em 1969 devido a perseguição da ditadura militar. Nos anos 70, junto a José Rubens Siqueira e Stil, fundou o Grupo NOS, cujo símbolo era uma casca de noz. O grupo existia para incentivar realizações, quando na realidade trabalhava-se isoladamente.
Em 1970 Moreno esteve ao lado de Stil como assistente de direção das animações Urbis e O Filho de Urbis. Os desenhos animados mostram diversas situações do homem na cidade: a massificação, a solidão, a poluição. Os dois filmes foram realizados em apenas 3 meses, usando papéis de embrulho como suporte. Em 1972 Moreno realizou seu primeiro vôo solo com a animação A Raposa e o Passarinho.
Na mesma época, Moreno decidiu tentar 'viver de cinema' a todo custo, operando enquanto assistente de direção, figurante, montador e continuísta em longas-metragens de ficção. Assim, foi assistente de montagem em Ainda agarro essa vizinha de Pedro Carlos Rovai (1973), continuísta em Costinha e o King Kong de Alcínio Diniz (1977) e assistente de direção em Amor Maldito de Adélia Sampaio (1983). Escreveria em seguida livros e artigos de cinema que publicaria em jornais e na Revista Cinemin durante os anos 80.
Em 1974 realizou Reflexos em parceria com Stil. O dispositivo era simples: Stil animaria desenhos a partir da música Dança Brasileira de Camargo Guerrière, enquanto Moreno animaria O Canto do Cisne Negro de Heitor Villa-Lobos. Trata-se, portanto, de um filme espelhado, em duas partes, a primeira de Moreno e a segunda de Stil. O segundo dispositivo é o da materialidade: usariam apenas papéis de embrulho para realizar as animações. O terceiro dispositivo é o das metamorfoses: um morcego vira uma flor, de dentro da qual sai uma figura humana, e assim por diante. Entre as figuras evidenciam-se instantes de pura abstração e deformação topológica.
É curioso notar o contraste, pois enquanto o canto de Moreno possui um tom melancólico, de desamparo das figuras no “vazio” do papel, as figuras de Stil não se opõem ao vazio do papel, constituindo um todo em si mesmo, avançando vertiginosamente através de “uma imensa galeria de personagens do mundo folclórico brasileiro”. Surge talvez a primeira marca do cinema pessoal de Moreno: a animação vislumbrada como cinema da exuberância e da fugacidade, da banalidade absurda da vida (como diz-se em Eclipse: “morrer é comum, compõe o absurdo"), das borboletas e do último canto do cisne, avatar da noite e da homossexualidade.
Em 1975 Antônio Moreno realiza Ícaro e o Labirinto, filme sobre a vertigem adolescente em seu isolamento mental interior. No filme por vezes o cenário se move mas não as personagens, invertendo a ação e gerando movimentos imóveis, paradoxais. Por vezes as metamorfoses são paralelas: tanto as personagens quanto os cenários se alteram. Enquanto Ícaro voa em um mundo interior, Breathe de Pink Floyd acentua a narrativa vertiginosa, retrato das incertezas de uma época. É curioso notar o contraponto entre os planos filmados em um parque (no prólogo e no epílogo) e as partes animadas. O paralelismo entre o lado de dentro e o lado de fora leva à visão de um sol interior, dos sonhos, das divagações mentais, em oposição ao sol exterior, da realidade cotidiana e da vontade prática minada por tempos sombrios.
Em 1981, Moreno realiza o documentário Oxumarê, Serpente e Arco-Íris, com alguns trechos de animação. O filme se constrói a partir de entrevistas realizadas pelo próprio Moreno em um floresta com o babalorixá Onvulokuembo. Trata-se de um filme sobre um orixá especialmente raro em suas manifestações, orixá serpente, avatar das artes, da animação e da inspiração divina, demolindo as fronteiras entre natureza e cultura. Filmado com sobras de negativos de outros filmes, Oxumarê possui uma coloração amarronzada, levando-nos a um paradoxo involuntário entre o arco-íris da inspiração divina e as dificuldades impostas pela engrenagem do subdesenvolvimento (simbolizado pela própria coloração do filme).
De 1984, Eclipse é talvez a obra-prima de Moreno e sua última animação. Construído a partir da composição Rudepoema, peça para piano extremamente moderna de Villa-Lobos, Eclipse é uma animação vertiginosa em sua velocidade, coloração e virtuosidade técnica. O filme foi realizado através da técnica de pintura direta em película (transparente), intervindo igualmente em uma série de sobras de negativo de seu curta Oxumarê (imagens de mapas, de florestas, de serpentes, do mar...). Moreno usou todas as cores invertidas, barateando o processo enormemente ao não ter que gerar um internegativo, podendo partir direto da película pintada para a copiagem. Assim, ao pintar a bandeira do Brasil, usou laranja para o azul, e roxo para o amarelo.
À música de Villa-Lobos e à pintura direta na película, somam-se três vozes que disparam textos reflexivos, metafóricos, amargos, sobre a situação do país após 21 anos de ditadura. Eclipse atravessa o simbólico das falas e bandeiras, o imaginário dos choques e da velocidade fílmica, para atingir o informe virtual de uma realidade subreptícia, diagramática, que aponta para novas epistemes possíveis em um mundo de desmoronamentos. Desenham-se futuros atômicos ainda que esperançosos em suas explosões de cores reinventadas. Como diz-se no filme: “se hoje ainda posso inventar as cores, para me expressar, é que antes, algum irmão camarada meu, desta terra em que nasci, e desta água que bebi, me ensinou a olhar, e me disse que durante o eclipse as cores mudam, que eu tinha que as inventar”.
Em 1985, Eclipse ganhou o prêmio especial do júri em Gramado, por sua qualidade e experimentação. O filme foi exibido em salas de cinema durante a Lei do Curta, sendo programado junto ao longa-metragem norte-americano Rambo. Curiosamente um filme experimental anti Guerra Fria era projetado antes de um produto de propaganda da era Reagan. Evidentemente, muitos espectadores se viram incomodados.
Em Gramado, Antônio Moreno conheceu Arthur Omar, que faria a trilha sonora de seu curta-metragem de ficção O Olho Amarelo do Tigre (1988). O filme foi realizado a partir das arrecadações de Eclipse na Lei do Curta. Filmado no interior de uma igreja escura, O Olho Amarelo constrói-se a partir do diálogo entre uma mulher de aspecto burguês e um cristo ensanguentado mudo. Tem como inspiração a religiosidade das mulheres da família de Moreno no Ceará, sintetizando na fala de uma única personagem feminina tudo o que suas tias e avós não diziam abertamente sobre a miséria, a família, a dor, a religião. Com forte influência de Clarice Lispector, o filme possui cor propositadamente amarelada, conferindo aspecto excêntrico à fotografia escura, que muitos acreditaram originar-se do uso de negativo envelhecido. Como curiosidade, Zózimo Bulbul desempenha o papel de um dos anjos da guarda no filme.
Moreno fez outros muitos filmes de animação, alguns frutos de oficinas com alunos da UFF. Terreno de contínua reflexão, a produção de Moreno tensiona entre liberdade sonhadora e absurdo existencial, entre criação inspirada e engrenagem estatal que tudo esmaga e devora, entre natureza exuberante e caos mental. Expressão de uma era de incertezas, o que se torna evidente já no título de uma de suas primeiras animações: Reflexões ou divagações sobre um ponto duvidoso, seus filmes são frutos de um vitalismo que devaneia entre o banal e a vida em excesso. Equilibram-se como tênues fios de aranha, constructos raros, estendidos como fios da virgem ou babas do diabo sobre o abismo da precariedade e da falta de sentido.
FILMOGRAFIA
A raposa e o passarinho, animação no papel de embrulho, pintada com canetas hidrocor, 1972, 6', 35mm.
Reflexões ou divagações sobre um ponto duvidoso, desenho animado em acetato e cenas ao vivo, 1973, 9', 35mm.
Reflexos, co-realizado por Stil, animação em papel de embrulho, 1974, 5’47”, 35mm.
Ícaro e o Labirinto, desenho animado com prólogo e epílogo ao vivo, 1975, 7'16'', 35mm.
Verdes ou favor não comer a grama, desenho animado com prólogo e epílogo ao vivo, 1976, 9'15'', 35mm.
Cedro, açude tombado, 1976, Super 8.
Moço, quer que eu conte a história de Olinda, 1976, Super 8, inacabado.
Boa Viagem, 1976, Super 8, inacabado.
Frutas da terra, 1976, Super 8, inacabado.
Chico da Silva, 1976, Super 8, inacabado.
As desventuras de coco banana, animação em papel e colagens de fotos e jornais, 2 partes, 1977-1979, 18', 35mm.
Vão-se os pais, ficam os filhos, animação em papéis coloridos, 1980, 5'26'', 35mm.
Oxumarê, serpente e arco-íris, documentário com partes em animação, 1981-1984, 10'21'', 35mm.
Eclipse, filme-ensaio sob a forma de animação direta em negativo, 1984, 12'43'', 35mm.
O olho amarelo do tigre, ficção, 1988, 14'07'', 35mm.
A fome deforma, animação direta em película, campanha contra a Fome de Betinho, 1993, 1'30'', 35mm.
De onde vem esse garoto?, documentário ficcional, 1993, 15', 16mm finalizado em vídeo.
Viva Bigode, Uma Conversa Informal com Luiz Carlos Lacerda, co-realizado por Tatiana Xerez, documentário, 2008, 43'37'', digital.
O planeta de Stil, co-dirigido por Jansen Raveira, documentário, 2013, 19’35”, digital.
Assista ao Eclipse, filme-ensaio experimental sobre os 21 anos de ditadura no Brasil. Realizado através de animação direta na película, ganhou menção honrosa no XIII Festival de Gramado em 1985. Foi digitalizado em 2019 através da iniciativa do Urubu Cine. Os negativos originais em 35mm, matrizes desta digitalização, encontram-se depositados em regime de comodato no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro. A cópia 35mm, utilizada como referência, encontra-se depositada na Cinemateca do MAM.