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TAQUARIL MOONSTRUCK

FICHA TÉCNICA

Direção e Câmera: Lucas Parente

Dança: Lucía Santalices e Felipe Mourad

Montagem: Cláudio Tammela e Lucas Parente

Tipografia e Poster: Helena Lessa

Trilha Sonora: Rodolfo Caesar

Mixagem: Damião Lopes
 

PEQUENA FORTUNA CRÍTICA

mana teus cabelos mana
são os arvoredo...
mana teus cabelos mana
são os arvoredo...
toca fogo neles mana
de manhã bem cedo...
toca fogo neles mana
de manhã bem cedo...

Filmado em Taquaril (Petrópolis) e na Floresta do Horto e das Paineiras (Rio de Janeiro), Taquaril Moonstruck é um filme baseado em um mito subterrâneo que atravessa diversas culturas.

No Brasil indígena é o mito de Iara, a Mãe d'Água. Um caçador segue pelas matas o rastro de um bicho. De repente ouve uma voz que se confunde com o ressoar da própria floresta, com as águas e 1o sopro através da madeira. O caçador segue a voz até chegar na beira de um lago que nunca havia antes visto. Nas águas um corpo como feminino nada e desaparece mergulhando. O caçador então se lança e é devorado por Iara, a metade mulher, metade peixe. 

De origem africana (mas também presente em Cuba e no Brasil) é o mito de Oxum. Oxum vivia no rio (Oxum é o nome de um rio na Nigéria). Oxum vivia nua e se roçava nas pedras do rio para que sua pele ficasse sempre macia. Por isso as pedras dos rios são redondas e lisas. Por isso Oxum tem o corpo sempre jovem. Um dia um caçador entrou nas matas e se deparou com o Orixá se banhando nas águas do rio. Setindo-se atraída por aquele homem forte e bonito, Oxum dançou sua dança. Até que com o mover das contas que cobriam o rosto de Oxum, o caçador descobriu sua verdadeira idade. Oxum tinha o corpo jovem, mas o seu rosto era velho de velhice secular. O caçador então se assustou com aquelas rugas, com aqueles olhos desbotados, e tentou fugir. Oxum não o deixou escapar, e o apunhalou com o seu idá (o seu punhal). Não queria que as pessoas da aldeia soubessem que estava velha. Não queria que a confundissem com a feiticeira mulher-pássaro. Matou o caçador com seu punhal e se transformou num peixe. Se transformou de certa forma no próprio rio. E aí ainda vive.

Na Europa antiga é o mito de Ártemis (ou Diana) presente nas Metamorfoses de Ovídio. Numa noite de lua, Acteon adentra as matas com uma matilha de cães e logo se depara com Ártemis que, numa queda d'água, banha-se à luz da lua. Ártemis, antes de costas, se vira e olha para o caçador. Deusa e virgem, não pode ser avistada por mortal. Com seu olhar transforma Acteon numa corça (capreolus capreolus), animal que é logo devorado pelos cães.

É curioso como nas histórias de Oxum e de Ártemis há toda uma lógica dos olhares. Uma relação especular – um jogo de espelhos que provoca uma transformação. Sempre o caçador é quem vê primeiro a deusa. No caso de Oxum, ela olha de volta, mas ainda não é vista. Ao ser vista, o seu olhar se torna mortífero. No caso de Ártemis, ela também é vista primeiro e só ao retornar seu olhar que transforma o caçador em caça. Assim, a relação se inverte: o homem que vinha como sujeito (da história), vendo a mulher como objeto (de desejo), finalmente se torna objeto (a partir da devolução do olhar) e morre – a morte como um sujeito que se torna objeto.

Digamos que quem fotografa termina por ser fotografado.

Essa metamorfose, que se opera através do cruzamento de olhares, encontra-se já presente na natureza híbrida da deusa. Sempre de início pensamos que se trata apenas de uma mulher. E logo descobrimos que "ela" é "mais e menos" que uma mulher. O princípio masculino – e nobre – do caçador, é estilhaçado diante de tudo o que não é nem masculino nem adulto: mulher, velha, jovem, animal, deusa... tudo isso ao mesmo tempo e mais: trata-se de um ser horrível que se revela. Monstruoso porque ao mesmo tempo híbrido e repugnante. Uma ameaça que transborda os limites do olhar e da escala do homem.

Mulher-peixe no caso de Iara e Oxum. Mulher-loba no caso de Ártemis – como podemos ver nas representações da deusa com vários seios. Mulher-pássaro no caso de Hagoromo. Hagoromo significa "manto de plumas". As vinte entidades lunares vestem o hagoromo e com ele voam e dançam, marcando as fases lunares – de 20 dias.

Numa noite de lua um pescador japonês se depara com uma destas deusas lunares, se banhando numa fonte. Ele vê o hagoromo dependurado numa árvore e toma posse do manto precioso. A deidade fica despida – sem o manto ela não é nada. Ela perde os seus poderes. Ela pede então que lhe devolva o hagoromo. Em troca ela dançará para ele. Ele diz que não (como um bom malandro japonês dos filmes de Kurosawa e Mizogushi), que se devolver o hagoromo ela poderá escapar voando. Ela diz então que ele não pode desconfiar das palavras de uma deusa. Com essas palavras ele cede, devolvendo sua veste. E ela veste e dança e sai voando pelos ares.

A versão japonesa (que lembra a história das mulheres-pássaro de As mil e uma noites) parece depurada. Não contém nenhum indício de violência e monstruosidade. A troca de olhares se torna uma troca de objeto – um negócio. Trata-se basicamente da mesma história, mas sem o transbordamento final, sem o seu caráter excessivo, "bouleversant". O homem permanece homem. A deusa permanece jovem e bela – sua natureza animal/divina parece estar no hagoromo e não em seu próprio corpo.

Poderíamos citar muitas outras histórias que seguem as linhas principais do mito. A moura do rio, a mulher-serpente... Histórias registradas por Câmara Cascudo ou presentes nas Mil e uma Noites. Mas talvez a mais conhecida no Ocidente é a história de Salomé, presente nos evangelhos de São Mateus e São Marcos. Fala-se pouco de Salomé no Novo Testamento, mas é interessante notar que uma série de artistas de espírito decadentista, como Oscar Wilde e Gustave Moreau, intensificaram o aspecto lunar e híbrido da deusa, assim como sua troca de olhares com o último profeta e primeiro santo.

É possível também estabelecer uma série de eixos temáticos presentes no mito. Por exemplo: a questão do travestimento. No filme de Ken Russell Salome's last dance, adaptação da peça de Oscar Wilde, Salomé é de vez em quando uma menina (prostituta de cabaré), de vez em quando uma travesti (atriz de teatro e amante de Oscar Wilde). A ambiguidade humana/divina, jovem/velha, mulher/animal, se transforma em uma ambiguidade de gênero. O horror metafísico vira horror moralista e o aspecto moral do conto se torna evidente. A revelação que levava o herói/caçador à morte, leva agora o artista à cadeia ou ao exílio.

De onde saltamos a ainda outra versão do mito que faz da virgem lunar uma travesti. Trata-se de uma versão neo-barroca extremamente lapidada do mito, a que está presente no romance de prosa poética De donde son los cantantes do escritor cubano Severo Sarduy. Na primeira parte do livro, conhecida como a "parte chinesa" (as outras duas partes são a africana e a espanhola), Sarduy descreve, com detalhes eróticos cheios de odores e adornos, uma Shanghai imaginária (imagem ideal dos puteiros de Havana) onde narra as aventuras de Flor de Lotus, bela vedete perseguida pelo General, galego libidinoso que não sabe que a sua amada é na verdade uma travesti. A ambivalência sexual é refletida na duplicidade da própria paisagem, posto que Shanghai é descrito como um bambuzal (o que não deixa de ser curioso, já que a palavra Taquaril significa "pequeno bambuzal" em tupi). Sarduy descreve as duas figuras no bambuzal com tantos detalhes e camadas de sentido, que o tempo se congela numa espécie de paisagem chinesa, repleta de seres ocultos em pareidolias.

Na literatura de Sarduy, a travesti é o símbolo máximo do ser cubano ou latino-americano. É na figura da travesti que se fundem Oriente e Ocidente. Segundo Sarduy, o homem europeu teria buscado, durante toda a baixa Idade Média, o Éden no Oriente árabe ou chinês. Teria então saído em busca da conquista material do paraíso, tentando atualizar a sua fantasia virtual através das Cruzadas e das Grandes Navegações. Não é à toa que a literatura que descrevia o Oriente fantástico (das viagens de Mandeville e São Brandão a Marco Polo) influenciou enormemente a visão de mundo de navegantes como Cristóvão Colombo. Acontece que o Oriente sonhado não existia enquanto tal e no meio do caminho encontraram outra realidade: a das Américas e seus povos indígenas. O choque foi tão brutal que o sistema simbólico europeu correu o risco de arruinar-se. Para impedi-lo, fabricaram um éden artificial, a meio caminho entre o que era idealizado (o éden oriental) e o que era no fundo verdadeiramente desejado (já que por detrás de tal representação edênica escondia-se uma fantasia sexual). A travesti seria, portanto, segundo Sarduy, uma fusão do sonho com a realidade, da natureza e da cultura, da ideia mental e da libido sexual. Atualiza-se, assim, na América – a meio caminho entre a Europa e a Ásia –, a fantasia inconsciente do Ocidente. Afinal, a hermafrodita sempre foi o símbolo da completude, a união dos contrários em um só Eros Total, o andrógino divino Baphomet.

Esta chinesa/travesti no bambuzal perseguida por um europeu/general/caçador remete, por sua vez, à Madame Butterfly (a novela, a ópera, a peça e o filme), outra história de troca de olhares e travestimentos entre colonizado e colonizador. "Olhar de volta" é a negação da negação, proferida por alguém que diz "não, eu não sou objeto". Devolver o olhar seria portanto a base de toda forma de resistência.

Em De la séduction, Baudrillard diz que a travesti se confunde com o próprio princípio da sedução. É ela a pura metamorfose, ninfa/crisálida como a gueixa Butterfly. A travesti está sempre jogando com os signos, sendo quem melhor sabe desviá-los, capaz de fazer de si mesma talismã, ser-amuleto, sujeito apotropaico. Do seu lugar construir uma permanente simulação. A travesti é a mácula da artificialidade enquanto não-natureza. Contra o controle, impede outra forma de simulação/sedução – a simulação do poder (a do caçador/empresário camuflado no bambuzal).

Neste sentido há muito de travestimento (e de questões relativas ao poder) no mito. De forma que seria interessante fazer uma versão que teria ao invés de um caçador, um homem vestido de terno e gravata, e ao invés de uma mulher, uma travesti. Pois como diz Baudrillard, apenas com sedução se combate a sedução. Apenas com simulação, a simulação. Mas tampouco o caçador é hoje tão facilmente apreensível como "macho branco no comando". De forma que, talvez, melhor ainda, seriam dois (caçador e feiticeira) travestis – rompendo com o dualismo estanque do mito.

* * *

Como "quem conta um conto aumenta um ponto", Taquaril Moonstruck não é uma adaptação de uma determinada versão do mito, mas um trabalho que surgiu da sobreposição de uma série de características das diversas versões somadas a elementos outros ausentes nos mitos clássicos. Para formar esse "nó de imagens", tanto trabalharam a memória e a leitura, como o esquecimento e o improviso. Temos a voz encantadora de Iara sereia. O olhar mortífero de Ártemis. O corpo jovem (antigamente jovem e virgem eram sinônimos – era virgem a donzela, no sentido daquela que ainda não havia se casado) e o rosto velho de Oxum. A dança de Hagoromo, Oxum e Salomé (que é encantadora como o canto de Iara, de modo que dança e voz se fundem num só). Temos a cidade e a mata e finalmente a metamorfose através do barro (terra, água, madeira e vento são os elementos do vídeo). Do rosto envelhecido da feiticeira ao rosto deformado do caçador, o barro é um elemento híbrido, modular, monstruoso. É o princípio mesmo da aberração. E isso graças à proposta feita por Felipe Mourad de introduzir no filme a sua pesquisa com o barro. Na verdade tudo surgiu dessa amálgama de ideias (físicas) com experimentações corporais (não menos ideais) de Lucía e de Felipe.

Finalmente, o que parece ser uma gruta no final é na verdade uma árvore: um enorme Jequitibá na floresta do Horto. Poucos dias antes de irmos lá filmar tinha caído um raio que derrubou a copa da árvore – que por sua vez abriu uma clareira derrubando a mata circunvizinha. Essa imagem de uma mulher nascida de uma árvore (e no caso a caverna/útero da árvore/terra se confunde aqui com o mundo dos mortos) foi a primeira imagem que germinou a vontade de fazer o vídeo – e a última a ser filmada. Porque assim como o Saci nasce de um cogumelo após 7 anos de gestação (e daí já nasce sabendo tudo), a Caipora dos pés virados (outra entidade protetora das matas, ao mesmo tempo patrona e inimiga dos caçadores, como Diana) teria nascido de uma árvore depois de longa gestação. De forma que Curupira Moonstruck pode ser ainda outro nome possível para o vídeo.

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